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CONTO I – 

UMA QUESTÃO DE FÉ

 

 

 

 

Soube que você andou conversando com o bom Sr. Águia, não é mesmo? Com certeza uma boa companhia. Presumo que assim como foi até ele, agora vem até mim, ouvir as histórias deste velho Padre? Pois bem, meu jovem, puxe uma cadeira, se recline e fique à vontade, é um prazer compartilhar da minha experiência de vida. Sabe, não vou lhe mentir, mas ouvi tudo que o Sr. Águia lhe contou, não por intenção, mas você sabe, possuo visão e audição extremamente aguçados - é esse tipo de Mitho que sou.

 

E eu concordo com ele, aqueles eram bons tempos. Sabe, às vezes temos momentos únicos e maravilhosos e não valorizamos. Somente depois, acabamos olhando por passado com nostalgia, recordando aquele tempo bom que não mais voltará. Deixe me reforçar e contar agora mais um pouco sobre aqueles tempos e meus companheiros, do meu ponto de vista.

O Sr. Águia é muito parecido comigo, inclusive hoje em dia nossas “funções” não são tão diferentes. Ele é o guia-conselheiro da comunidade, enquanto eu sou o guia espiritual, mas as pessoas recorrem a nós dois quando precisam de qualquer ajuda ou direção em um modo geral.

Mas ele sempre vê apenas o melhor das pessoas, enquanto eu também observo as falhas, os erros humanos e os pecados - a fim de guiá-los na direção correta. Conhece a parábola da ovelha perdida? As que estão no rebanho já estão no caminho certo, enquanto a perdida é a que necessita de maior atenção. Mas não se preocupe, não estou aqui para tentar lhe converter, convencer ou pregar sobre a palavra do Senhor, eu respeito todas filosofias e religiões, e seja lá qual for a sua, não irei pregar a menos que queira saber mais sobre os misteriosos caminhos do Senhor. Mas vou lhe contar uma história sobre isso.

 

O Sr. Águia lhe disse que eu repreendia muito o Sr. Granada por seu vocabulário hediondo, suas pegadinhas e trotes, ou até mesmo seu fanatismo por armas. Reconheço que não tenho muita moral para questionar o arsenal, mas meu equipamento é para sobreviver e trazer justiça aos que necessitam, não um brinquedo que me diverte. Mas a maior questão que me incomodava no Sr. Granada era sua falta de fé.

 

Não me entenda errado, eu amava meus companheiros como se fossem irmãos. O Sr. Granada era um excelente homem. Mas um homem precisa de fé, seja ela qual for. Fé em Deus, fé em si mesmo, fé em seus companheiros... Enfim, eu sentia que precisava guiá-lo. Ora, como disse, você pode acreditar no que quiser, mas sabe que certas coisas estão além da nossa compreensão. Quando perdemos um ente querido, como muitos perdi, o que podemos fazer? Você pode blasfemar, pode sentir raiva, pode culpar a quem quiser, mas sabe que no final a única coisa que realmente pode fazer é aceitar. Acreditar que é tudo parte de um plano divino, e que seu ente adorado está em um lugar melhor, isso é ver o copo “meio cheio”.

Posso imaginar o que está pensando, mas não, não estou tentando lhe convencer de nada, apenas lhe expondo a razão de minha fé. Não pense que sou um fanático de mente fechada, caso não saiba, sou muito estudado, e antes de ser um Mitho, me formei filósofo, teólogo e doutorado em ciências humanas.

 

Podemos até falar da teoria da evolução. Por mais que possam dizer que ela contradiga a fé, por que não pode ser as duas coisas? Por que a evolução não poderia ter sido iniciada pela mão de Deus?

 

O que remete ao tópico principal de nossa conversa: o Sr. Granada não estava disposto a conversar sobre esse assunto, ele sempre dizia “Cada homem faz seu próprio destino”. E é claro! Eu nunca neguei isso. Deus nos deu o livre arbítrio.

 

Certa vez, cometi o pecado da soberba e resolvi enfrentar um oponente cuja minhas habilidades não estavam à altura. Ele era imbatível, mas eu me recusei a recuar. Não, não era o Armada - que nem cheguei a conhecer, estava em ouras andanças nessa época -, e quem era, honestamente, não importa. Mas o fato é que fui brutalmente espancado e jogado de uma janela de um castelo de vinte andares, caindo no lago que circundava o castelo, e ferindo gravemente a minha perna na queda. Eu a perdi por conta disso, mas o Doutor criou uma biônica, que novamente foi danificada por causa desse mesmo sujeito.

 

E eu me lembro que após ter sido espancado, jogado do castelo e estar em um estado deplorável, ao receber os cuidados do Doutor, o Sr. Granada debochou: “Onde estava seu Deus, Padre?” E eu que digo, meu Deus! Para mim, o fato de eu ter sobrevivido à tal fato, era nada se não um milagre divino. Não foi a mão dele que evitou que eu caísse nas pedras ao redor, em vez de cair no lago, sobrevivendo? Não, não para o Sr. Granada. Infelizmente, o maior cego é aquele que não quer ver.

Ironicamente, foi através de uma mentira que consegui despertar a fé no jovem senhor Granada. Na verdade, não uma mentira, mas uma omissão.

 

Nós estávamos em uma ilha com uma cidade extremamente involuída, com ocas em vez de casas, onde utilizavam a água de um rio, pois nem poço ou uma fonte de água acessível possuíam, e um Mitho qualquer, cujo nome não me recordo, para variar tirava proveito do povo. Era um desses tipos de Mitho cujas emoções haviam sido removidas, mas o que fazia dele perigoso eram duas armas de fogo que ele possuía - das quais me apossei depois do ocorrido. Coisas simples, duas pistolas, mas uma covardia desleal contra aquele povo que levava uma vida praticamente tribal.

Não era uma ameaça grande para nós, no entanto. De fato, era tão irrelevante aquele Mitho, que mal lembro de sua aparência, também porque não cheguei a vê-lo por muito tempo - mesmo que ainda tivesse a memória de um jovem como você.

 

Decidindo agir, o Doutor e os outros ficaram no MecaShark, e o Sr. Granada e eu fomos resolver. Nós éramos uma boa dupla. Minha sensatez compensava a que lhe faltava e o humor e a extroversão com as pessoas dele também fazia um bom par com minha seriedade e introversão. Iríamos inicialmente tentar conversar com o sujeito e desarmá-lo, para depois amarrá-lo e levá-lo a algum lugar onde ele não poderia causar mal a ninguém. Mas para a nossa surpresa, ele possuía muita munição, indisposição à conversa e, me parecia, havia praticado muito.

Logo quando chegamos próximos a ele, pacíficos, ele atirou em mim rapidamente, direto no meu coração, me derrubando. Lembro que de imediato o Sr. Granada surtou e incinerou o pobre sujeito com um lança-chamas bizarro que se ocultava por entre as mangas de seu manto.

 

Então o Sr. Granada correu até mim certo do pior, mas não viu sangue e abriu meu sobretudo, vendo o furo. Foi quando então ele achou uma pequena bíblia de bolso que eu carregava no sobretudo, junto ao meu peito, furada, com a bala presa a ela. Foi a primeira vez que vi aquele tagarela se calar e um brilho diferente surgiu em seus olhos.

A bíblia era bem pequena, feita por mim mesmo, não era muito maior que um daqueles antigos maços de cigarros. E tinha uma letra tão minúscula que somente eu poderia ler com minha visão Mitho. Foi aquele dia que ele “perdeu a língua” e senti a fé brotar em seu coração. Pelos menos algum tipo dela.

 

É claro que nunca contei pra ele que eu usava um colete à prova de balas por debaixo da camisa e foi o colete que parou a bala, deixando-a cravada na bíblia.

Mas isso realmente não importa, pois naquela manhã, eu havia esquecido do colete, e um estalo que tive do nada que me fez voltar e vesti-lo. O que considero a mão de Deus me alertando.

 

Como disse, o Sr. Granada nunca soube do colete, sempre acreditou que foi a bíblia que parou a bala. Não faz diferença, pois ele acreditava.

 

Simplesmente acreditar. Não é essa a definição de fé?

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