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CONTO Iii – 

Golpe de sorte​?

 

 

Bom, “mortal”, como seu “tempo é curto” vou encerrar nossa conversa com uma história diferente. Como já lhe disse não tenho histórias de aventuras ou combates empolgantes e excitantes como deve ter ouvido do Mitho Águia e do Mitho Padre. Até por que eu não poderia vivenciar tais feitos. Acredite ou não, mas até disso eu sinto falta. Da dor física, de limpar o sangue misturado com suor, estar ainda ofegante após uma batalha mortal, enquanto cubro os cortes e ferimentos com ataduras. Não se engane pelo relato, nunca fui uma combatente ou guerreira mesmo antes de me tornar uma imortal e embora eu não lembre do meu passado, sei que não nunca empunhei uma arma. Mas vi muitas vezes meus companheiros fazendo isso, especialmente o Mitho Granada e o Mitho Garra. Me desculpe se isso soa estranho, não sou nenhuma masoquista ou sádica. Eu realmente via como eles ficavam depois desses combates, sentindo-se VIVOS. Com certeza, depois de enfrentar um monstro cruel, lutando por sua vida, você deve se sentir vivo e aliviado por continuar assim, e irá valorizar mais a sua existência. Mesmo a sede, como já lhe disse, a fome, a dor, as características “ruins” de ser mortal ainda devem ser valorizadas. Posso lhe garantir que ainda são melhores do que o grande vazio que sinto.

 

Me chamam de “Noiva Fantasma”, por crença dos mortais desse tempo que não entendem o que sou e acreditam que eu sou um fantasma de uma noiva que morreu no dia de seu casamento. Eu até preferiria que fosse verdade, pois pelo menos eu teria mais histórias pra contar. Eu deveria ser chamada “Fantasma Lamuriante”, na verdade.

Mas o que quero lhe contar não é isso, peço perdão por acabar me estendendo em meus lamentos e perdendo o “fio da meada”. Minha intenção é lhe falar sobre “sorte”.

Como já lhe contaram, eu fiquei anos presa em uma colina por ter meu sistema de voo danificado, e foi o Mitho Garra que me achou. Naquela época desconhecíamos a existência de baterias na própria base militar onde fui danificada, e o meu querido Doutor e o Mitho Granada, os mais geniais entre o grupo, tentaram de tudo por dias à fio, sem comer ou dormir, pois o Doutor se recusava a me abandonar. Por fim, fiz com que ele jurasse partir e ele foi, com pesar, junto dos outros. Eu temia por eles, pois durante aquela espera que para mim pareciam anos, e realmente acreditei que eles estavam perdendo seus preciosos anos de vida inutilmente ali comigo. Foi quando descobri que o Doutor, com seus mais de duzentos anos e equipamento de suporte vital percebia o tempo da mesma maneira que eu e para ele também foi como se fosse uma espera de anos. Para o Mitho Granada, Mitho Águia e todos os outros haviam se passado apenas alguns dias... Mas de qualquer forma, consegui fazer com que partissem, sem antes de ouvir o Doutor jurando que ficaríamos juntos e jamais iria desistir de mim e em suas jornadas iria encontrar um meio de nos unir.

Na colina onde caí havia uma cabana abandonada, e, bem, acabei caindo bem em frente, fato que contribuía mais para as lendas populares sobre minha aparição, de que aquela cabana havia pertencido a mim antes de eu “morrer”.

 

Mas enfim, ali eu fiquei. Cada segundo parecia horas e o tempo só era gentil comigo quando algum pequeno roedor aparecia ou algum mortal curioso e corajoso suficiente vinha falar comigo, trazendo, mesmo que de forma estranha, alguma forma de entretenimento, somente então o tempo parecia se tornar “normal”. E com o passar dos dias, ou anos, muitos Mithos passaram por ali. Entre eles, um Mitho meio perturbado chamado Ulic, que sempre repetia “eu não sinto nada”, um outro Mitho baixinho, com o corpo repleto de queimaduras e cicatrizes, que nunca soube o nome, e alguns outros dos quais nenhum pôde ou quis me ajudar. Mas num certo dia, um imponente Mitho, forte e poderoso como o Belker com sua musculatura aprimorada, apareceu, disposto a conversar. Falei sobre minha situação e sobre a base militar e despertei seu interesse. Por fim, ele resolveu inspecionar e explorar as redondezas.

 

Eu não posso lhe dizer quanto tempo ele levou, pois já sabe sobre como minha percepção de tempo funciona, mas por fim ele voltou, com a bateria em mãos. E foi a primeira vez que eu sorri em anos. Minhas preces tinham sido ouvidas. Segundo ele, embora com vários ferimentos, conseguiu entrar na base militar e descobriu que além de armamentos, havia centenas de baterias exatamente como a minha, e ele afirmou saber como repor a minha. Mal pude conter a ansiedade de voar para procurar meu amado Doutor e meus amigos Mithos, quando ouvi a pergunta dele em relação ao meu pedido: “e o que eu ganho com isso?”

 

Fiquei estarrecida. Por que ele agia dessa forma? O que lhe custava me ajudar? Não há respostas para essas perguntas. Ele simplesmente era dotado de tamanha ganância quanto poder. Quando lhe disse que nada tinha a oferecer, ele esmagou a bateria com a própria mão e me disse algo que nunca esquecerei: “você tem sorte de ser um fantasma. Caso contrário eu lhe estupraria e lhe mataria” – disse enquanto jogava a bateria fora e se afastava.

 

E eu apenas pensava em uma palavra depois desse encontro. “Sorte”. E tive “anos” para amargurar essa palavra, saboreá-la, se é que posso me expressar assim. Sorte de não poder abraçar quem amo. Não poder ir até meus amigos, não poder fazer nada por mim mesma. Talvez, naquele momento em específico, eu realmente tenha tido sorte de ser o que sou e não ter sido abusada e morta por aquele cretino. Mas digamos que aquele caso foi um dos únicos golpes de sorte que levei, pois sorte é algo que nunca esteve nessa minha presente “vida.”

 

Numa manhã que minha sorte mudou, eu estava parada (obviamente), quando uma pedra me atravessou e bateu contra a cabana. Notei então um pequeno Tarpal, com não mais que uns dez anos de idade, vestindo uma tanga e erguendo um estilingue, com uma lança nas costas, e o olhar ingênuo, mas vidrado em mim.

 

Os Tarpais são uma pequena aldeia tribal e primitiva, que ficava há alguns quilômetros da minha cabana. Muitos povos e culturas diferentes encontramos ao longo da nossa exploração, os Tarpais são só um exemplo de como a vida novamente se desenvolveu.

Do seu lado havia algumas frutas que ele havia deixado cair, e seu jeito continha uma mistura de medo e deslumbre. Com certeza ele estava “caçando” e colhendo frutas e acabou se afastando demais de sua tribo quando se deparou comigo. Falei para que ele não tivesse medo, que se aproximasse, pois eu não iria feri-lo – e sequer poderia. Timidamente e receoso, ele começou a se aproximar. Tentou me cutucar de leve com sua pequena lança, enquanto eu sorria e tentava tranquilizá-lo e me comunicar. Ele acabou ficando mais à vontade e tentou me tocar, fazendo com que sua mãozinha atravessasse minha imagem intangível. Finalmente ele criou coragem e me perguntou, com gestos que entendi depois de um tempo, se eu era um fantasma. Mesmo com as divergências na comunicação, a expressão de crianças é algo praticamente universal, utilizando-se de símbolos comuns. E era prazeroso também, ver como aquele ser curioso e cheio de vida, com tanto para vivenciar no futuro, podia sentir-se tão atraído pela minha presença – e como lidava com isso de forma positiva.

 

Então eu tentei lhe explicar como se explica para uma criança, que eu era uma pessoa, mas diferente, que eu não podia tocar ou ser tocada, que apesar disso eu tinha sentimentos e pensava como uma pessoa normal, apenas não tinha um corpo sólido. Logo ele se sentou em minha frente e através de gestos retratou que a aldeia dele também era diferente, que viviam numa parte muito árida e seca da ilha, e eu quando estavam no calor, seu corpo transpirava um líquido pegajoso. Por conta disso, os mortais comuns os chamavam de “pegajosos” e tinham medo e nojo da tribo dele. Notei que na sombra, ou em lugares mais frescos, sua pele não emitia o tal suor pegajoso, e ele poderia se passar por um mortal comum. Claro, anos depois eu descobri que eles eram uma espécie de raça que se modificou geneticamente, talvez por algum fator local ou mesmo pela reprodução de algum Mitho diferente que deu origem à essa variante racial, e que eles realmente foram excluídos para áreas de difícil habitação por conta disso.

 

Mas o que importa é que por muito tempo, talvez anos, ele vinha sempre conversar comigo e foi o único amigo que tive. O ensinei a ler e escrever a língua comum, aprimorando um conhecimento básico que ele já tinha, lhe ensinei algo sobre história, geografia, enfim, tudo oo que pensava saber – conhecimento que não é tão útil ou valorizado nos dias de hoje, mas que encantavam o garoto mesmo assim.

Tudo, inclusive valores morais, eu passei ao pequeno, que manteve o costume me visitar. Às vezes trazia frutas para nós dois e comia, também, por nós dois, enquanto ambos dávamos risadas. E embora eu não tenha uma noção real do tempo mortal, eu vi o pequenino crescer e notava a diferença em suas visitas.

 

A última vez que o vi, ele já era um homem com seus vinte anos, e me prometeu que um dia me ajudaria a restaurar minha bateria, e que iria dominar a base militar e proteger as baterias de lá, até que encontrasse alguém que soubesse como trocar a minha danificada.

Somente anos depois, fui saber que ele realmente cumprira com o que falou, e estava montando uma aldeia nessa base militar. Mesmo que talvez ele não saiba, também, ele acabou ajudando o Mitho que mais tarde restaurou minha bateria.

 

Eu sei que ele está bem agora, eu sinto no meu coração. Nunca esquecerei da primeira vez que vi o pequeno Tarpal chamado Telgon.

 

Então acabo me voltando para a questão que abordava: sorte. Surge nessa frase, que jamais deixarei de pensar, proferida pela boca do pequenino depois melhorar aos poucos nossa comunicação e linguagem:

 

“ – Saí pra caçar e acabei encontrando você. E você não é um fantasma, mas um anjo!
Isso que é sorte!”

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